terça-feira, 14 de julho de 2009

O começo de um livro

Estava uma tarde de sol em pleno mês de Julho, mas o calor não se sentia como era hábito. Era uma tarde igual a tantas outras nesse Verão. Mesmo assim pelas ruas as pessoas, famílias, amigos ou meros estranhos, desfilavam contentes por sentirem o Sol a aquecê-los docemente.

Era claramente possível distinguir quem estava na plataforma com o único objectivo de chegar à praia.

"Parecem rebanhos” – dizia Sebastião, com o seu ar sempre brincalhão, e um ligeiro tom irónico na voz.

“Lá estás tu a criticar!!!” – disse Alice, com o seu olhar moralista e reprovador, a tentar passar a imagem de santa pura e imaculada.

Mas efectivamente até pareciam rebanhos, massas de gente descontraída à espera de aproveitar umas horas de praia, prontas para torrar ao Sol que nem plantas em fotossíntese. Muitos já pareciam lagostas suadas, com um tom de pele vermelho do seu belo e típico escaldão, completamente inconscientes dos males que isso lhes trazia.

“Gente estúpida!!! Devem querer morrer cedo! Já viste aqueles escaldões?? Se usassem protector nada disso acontecia. E depois admiram-se com as notícias quando chegam a casa, e até devem ser capazes de chamar os outros de inconscientes. Depois chegam à praia e usam factor 2 para bronzear mais. Quando tiverem cancro da pele não chorem muito. Eu não vou ter pena alguma!!!” - disse Sebastião, já olhando para o seu futuro como médico.

Sebastião, um rapaz alto, magro, moreno e de cabelo curto espetado com gel que nem um miúdo traquina, tinha agora os seus 20 anos, tal como Alice, e estava a tirar o curso de Medicina. Era o orgulho da família, o único filho, num total de 3, a tirar um curso universitário e logo Medicina. Os pais falavam dele a todos os vizinhos, e Sebastião era conhecido como um brincalhão de primeira, mas um verdadeiro crânio. A sua família era de origens simples, nem pobre nem rica, humilde, unida e sempre com uma visão positiva face à vida.

“És tão parvo Sebastião! Já a chamar nomes às pessoas!! Sabes lá se até usaram protector com factor 750, mas a pele é tão sensível que apanharam um escaldão. Partes tão rápido para os teus juízos de valor! Nem sempre as coisas são como parecem ser. E quando terminares o teu curso, não tenhas pressa em dizer às pessoas que elas vão morrer só porque não usaram o factor de protecção que deviam e agora têm cancro. Isso é maldade!! E o teu dever é ajudar, não criticar!!!” – disse Alice, novamente com o seu semblante característico de santa moralista.

“Oh Alice! Sempre com as tuas lições de moral! Tu não mudas! Mas olha, não és nenhuma santa! E ninguém te vai canonizar! Há mais probabilidade de te carbonizarem, do que te canonizarem.” – Disse Sebastião a rir desalmadamente para todos ouvirem, com a sua gargalhada contagiante.

“És tão tonto! Vá, vamos lá!! Vem aí o comboio. Mais uma gracinha dessas e atiro-te para a linha do comboio.” – disse Alice com um ligeiro tom maléfico mas sempre na brincadeira, afinal ela e Sebastião eram melhores amigos há tantos anos.


“Então Santa, estás a virar pecadora agora? Queres quebrar um dos mandamentos? Ai ai essa catequese! Andas a faltar!?” – disse Sebastião, sempre gozão e irónico. Alice nem prestou atenção.

“Já viste aquela senhora esquisita? Que roupa pessimamente coordenada!” – Disse Alice.

“Ah, sou sempre eu que critico, não é? Agora és tu!! Esse comentário foi tão superficial. Não vês que é uma sem-abrigo? Coitada, mal deve ter tido dinheiro para o bilhete. Provavelmente nem sequer comprou, e daqui a pouco aparece o revisor e lá vai ela escorraçada numa paragem qualquer. Enfim... é a vida” – Disse Sebastião, com um suspiro pesado de tristeza, já sentado na carruagem do comboio. Alice preferiu não responder. Ela detestava ser alvo de críticas, e agora tinha sentido que não havia tomado a melhor atitude, mas nestes assuntos de aparências, ela tendencialmente era muito superficial.

Ficaram então os dois a contemplar fixamente a tal senhora, que estava sentada lá mais à frente, virada de frente para eles. Tinha um olhar envelhecido, vazio e triste, como de quem nunca deve ter sido feliz em toda a sua vida.

“Secalhar não tem família, ou então é daquelas senhoras cujos filhos simplesmente as abandonaram. É tão triste ver alguém assim. Fogo, dá-me um aperto no coração só de imaginar a vida que a senhora deve ter!”

“Olha, porque não vais lá meter conversa com ela? Já que estás tão interessado!” – disse Alice.

“A sério, não estou a gostar da tua atitude. Só estou a dizer que deixa-me triste ver alguém assim. Não tens coração? Para uns assuntos tens sempre a mania dos moralismos, quer dizer ainda há pouco estavas a criticar-me porque eu estava a falar dos escaldões e agora estás aí a criticar a roupa da senhora e este assunto nem sequer te deixa minimamente comovida.” – disse Sebastião, irritado e desiludido pela atitude, embora já estivesse habituado à superficialidade de Alice naqueles assuntos de aparências.

Alice, uma rapariga de altura média, nem magra, nem gordinha, de cabelos negros compridos, cheia de gestos delicados e uma voz doce, filha única mas órfã de pai e de mãe. Estes haviam falecido com uma doença tropical desconhecida, numa viagem à Amazónia, tinha Alice 8 anos, sendo obrigada a passar pelo episódio todo sozinha num quarto de hospital, enquanto os médicos tentavam salvar os seus pais. Até hoje ela pensava que eles podiam ter sido salvos. Tinham feito a viagem com todas as vacinas feitas, eram sempre cuidadosos, e não havia razão para terem morrido, deixando-a aos cuidados da sua terrível avó de alcunha Cubo de Gelo Pombalino. Vivia com a avó, a Sra. Teles de Oliveira, uma senhora que gozava de uma vida folgada, e ostentava um estilo de vida luxuoso, mas sempre rígida e distante quem nem um cubo de gelo, sempre com o seu distinto e único corte de cabelo que mais parecia feito à imagem e estilo do famoso Marquês de Pombal, e daí a sua alcunha. A Sra. Teles de Oliveira sustentava a única neta, não deixando que lhe faltasse roupa, comida e educação, mas não havia lugar para luxos.

“Queres carros, saídas, e brincadeira? Para isso podes arranjar um emprego que só te faz bem. Para o resto, o essencial, estou cá eu para garantir que nunca te falte nada.” – era o que a Sra. Teles de Oliveira sempre dizia a Alice, não muito contente com a escolha de curso da neta, Jornalismo e Ciências da Comunicação, contudo sabia ser este o sonho de Alice.

Foram calados a viagem toda até Alcântara, observando pelo caminho conforme as pessoas saiam do comboio, de toalha e mini-arca frigorífica, a caminho das praias, mas sempre com o canto do olho na tal senhora que se encontrava à sua frente, cabisbaixa e solitária. As suas rugas profundas evidenciavam uma tristeza antiga, inúmeras histórias de consternação, e os seus olhos vazios mostravam que já nada a preenchia.

“Próxima paragem, Alcântara.” - disse a simpática mas automática voz do comboio.


O comboio pára, ambos levantam-se, vão até às portas, e saem, sempre calados, afinal já sabiam o seu destino, a sua esplanada favorita nas docas.

Mal chegaram à esplanada foram cumprimentados pelo empregado de mesa, o Filipe. Ele tinha sempre um sorriso especial para Alice, a quem dava sempre um pequeno chocolate com o café. Sentaram-se à mesa, ao sol, e nem precisaram falar. Filipe já sabia o que eles queriam, dois cafés, afinal eles iam aquele café quase todos os dias, e todos os dias Filipe tentava meter conversa com Alice, mas sempre sem resultado.


Sebastião e Alice ainda não se falavam, sentados a olhar para o rio, para a ponte, para os pássaros, para os barcos, mas nunca um para o outro. Surge então Filipe com os dois cafés, e sempre com um sorriso nos lábios como habitualmente.

“E um chocolatinho para si!!” – disse Filipe, com um olhar vidrado em Alice, que apenas agradece-lhe com muito esforço e sem sorriso.

“És tão patético! Alguma vez eu te ia dar trela? A um empregado de mesa? Enfim... se alguém soubesse era a morte da minha avó. Credo, deserdava-me em três tempos!” – pensou Alice, enquanto dava um trago no seu café, que naquele instante não tinha o sabor delicioso como nos outros dias, mas mais parecia veneno, algo intragável, difícil de tomar. Sebastião sentiu o mesmo quando bebeu o seu café. Era o sabor do constrangimento.

Alice nunca dava o braço a torcer, mas Sebastião, relembrado das lições de vida que a sua família sempre procurou incutir-lhe, decide subitamente meter conversa e quebrar aquele gelo que os impedia de aproveitar aquela tarde de sol.

“Vai um waffle com gelado, chantilly, nozes, amêndoas e topping de chocolate? Hmmmm... Tão bom! Vamos?”

“Nem pensar” – respondeu Alice – “Sabes bem que estou de dieta! Já viste os meus pneus? Estamos em Julho e eu aqui toda gorda. É por isso que nunca vou à praia. Que vergonha! E não é com waffles cobertos de calorias que eu vou ficar magra! Come tu que és um lingrinhas!”

“Mais um pouco e juntas-te à brigada da salada. Não?”

“Sim!” – responde Alice com um sorriso renovado – “Até gosto de saladas! Bem melhor do que essas comidas gordurosas e mega calóricas. Estás em Medicina, mas só comes porcarias!”

“Até parece que só como porcarias!” – disse Sebastião - “Achas que este corpo fenomenal é mantido como? Tenho uma dieta equilibrada.”

Olharam nos olhos um do outro, sorriram e subitamente desatam-se a rir sem parar de todo este episódio.

“És mesmo parvinha, sabias?” – disse Sebastião.

“Tu é que és, troll! “.

E assim tudo voltou ao normal, melhores amigos como sempre.

“Vamos andar um pouco? Já paguei os cafés. Aquele empregado está mesmo apanhado por ti” – diz Sebastião.

“Oh meu Deus, não desiste. Coitadinho do rapaz. Até é giro, mas é empregado de mesa. A minha avó ainda me matava se eu namorasse com alguém assim. Mas vá, vamos andar” – responde Alice, olhando curiosamente para a porta do café a ver se via o Filipe.

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